Entrevista na sala de imprensa do site do Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto, o ELSA. (http://www.elsa.org.br)
Dr. Paulo Andrade Lotufo leciona na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e é superintendente do Hospital Universitário da instituição. No ELSA Brasil, Lotufo é pesquisador principal e coordenador do Centro de Investigação SP.
Em entrevista ao site ELSA, o médico, autor de vários estudos epidemiológicos sobre doenças cardiovasculares, debate o andamento deste tipo de pesquisa no Brasil, além de falar sobre as crenças e tratamentos relacionados à atual conjuntura de aumento de doenças crônicas não transmissíveis no país.
ELSA Brasil: No Brasil, houve uma transição das principais causas de morte, de doenças infecciosas para as enfermidades crônicas não transmissíveis, em destaque as cardiovasculares. Como o senhor encara as condições do Sistema Único de Saúde para atender a população brasileira dentro desse novo contexto?
Paulo Lotufo: A transição epidemiológica em etapas é descrita somente com finalidades didáticas. De fato, o perfil das doenças se modifica no tempo de forma desigual tanto espacial como socialmente. Por exemplo, a mortalidade por doenças infecciosas é suplantada pela cardiovascular no Brasil nos anos 60, mas no Rio de Janeiro e São Paulo isso aconteceu vinte anos antes, em 1940. Mas, mesmo nessas cidades, a transição foi desigual de acordo com os segmentos sociais. Se essa dinâmica da incidência de doenças não é de assimilação fácil por cientistas, para os planejadores de saúde ela é muito mais difícil. De certa forma, o SUS está uma geração em descompasso com a realidade. Exemplifico: somente agora a hipertensão e diabetes foram alvo de uma política efetiva de controle com o co-pagamento de medicamentos nas farmácias. Aliás, um sucesso que o próprio governo federal não divulga e capitaliza a seu favor. Porém, essa proposta de assistência farmacêutica já era defendida pelos pesquisadores da época há mais de 20 anos, sem qualquer eco no Ministério e secretarias da saúde, cujos dirigentes raciocinavam como se o país estivesse nos anos 50. Agora, temos uma pletora imensa de idosos em pronto-socorros com insuficiência cardíaca, doença pulmonar obstrutiva e fraturas de fêmur, por um lado, e redução expressiva das taxas de fecundidade e natalidade, por outro lado. Mas, ainda há iniciativas em criar institutos da criança ou assemelhados pelo país afora.
E.B.: Estudos epidemiológicos sobre a efetividade de programas e serviços de saúde direcionados à prevenção e ao tratamento de doenças cardiovasculares têm sido desenvolvidos no Brasil?
P.L.: Sim, há cada vez mais estudos. A iniciativa do Ministério da Saúde, em conjunto com as Fundações de Amparo a Pesquisa do PPSUS, foi excelente. Aqui em São Paulo, na equipe que desenvolve o ELSA no Hospital Universitário, realizamos dois projetos. Um dos projetos identificou as internações evitáveis, por isso chamado de EVITA, e criou tecnologias de ação na atenção primária a programas de prevenção cardiovascular. Em breve, estaremos oferecendo um curso de especialização em doenças crônicas não-transmissíveis dirigidas inicialmente a médicos para que atuem na promoção de saúde, prevenção primária e secundária, aplicando os conhecimentos desse projeto. O outro projeto, com apoio do CNPq e FAPESP, é o Estudo de Morbidade e Mortalidade do Acidente Vascular Cerebral (EMMA) que estuda incidência, sobrevida e incapacidade com base hospitalar na fase 1, a mortalidade na fase 2 e a prevalência na fase 3. As informações dessa pesquisa orientarão a execução de ações de prevenção, tratamento e reabilitação.
E.B.: Existem muitas crenças errôneas em relação às doenças cardiovasculares, entre elas as de que tais males atingem apenas idosos e homens. Como evitar que tais idéias continuem se propagando, inclusive entre os profissionais da área médica?
P.L.: Sim, havia um estereótipo de que o “cardíaco” era um paulista ou carioca investidor da Bolsa de Valores, que habitava a ponte-aérea Rio-SP. Coube à atual geração de epidemiologistas demolir essa bobagem. O risco de morte por acidente vascular cerebral de um habitante da periferia de São Paulo ainda é o dobro do morador de regiões afluentes. Apesar da incidência e prevalência maior entre homens e idosos, as taxas de mortalidade na faixa dos 45-64 anos no Brasil ainda são das maiores quando comparadas à de outros países, principalmente entre as mulheres.
E.B.: Ainda que as doenças cardiovasculares sejam a principal causa de morte entre as mulheres, a preocupação com a saúde cardíaca feminina é recente. O que o reconhecimento desse dado implica no atendimento médico da mulher?
P.L.: A mulher é vítima da ginecologia, sempre gosto de brincar com o meu colega, Edmundo Baracat, professor de ginecologia aqui na USP. Incrível, mas mesmo setores feministas sempre viram a assim chamada “saúde da mulher” como algo relacionado à genitália e às mamas. Há uma obsessão em relação ao câncer, mas a chance de morte por doença cardiovascular é cinco vezes maior do que morrer por neoplasia de mama. O ELSA será um momento para testar a minha hipótese de que a sobrecarga de trabalho da mulher brasileira traz conseqüências terríveis refletidas na obesidade, tabagismo, hipertensão e diabetes.
E.B.: Em que estágio se encontra o campo de pesquisas epidemiológicas em doenças cardiovasculares no Brasil?
P.L.: Repetimos aqui uma seqüência que outros países já trilharam. Primeiro, os estudos de mortalidade pela simplicidade e baixo custo; depois, os inquéritos populacionais, caros e com muitos dados, mas com potencial baixo em comprovar hipóteses; agora, estamos com o ELSA avançando nos estudos observacionais. O próximo salto para 2012 será um ensaio clínico de grande envergadura. Aqui, em São Paulo, além das “mulheres ELSA, EMMA, EVITA”, temos também o projeto Avaliação do Grau de Aterosclerose em Adultos e Adolescentes, o AGATAA, que tem como objetivo avaliar populações específicas para verificar o grau de aterosclerose. O primeiro estudo está sendo realizado em pacientes HIV positivo em uso ou não de terapia antiretroviral. Um grande equívoco é insistir em estudos de prevalência, quando coortes ou ensaios clínicos trazem muito mais respostas às nossas indagações.
E.B.: E o que representa o ELSA neste cenário?
P.L.: Não sou modesto. O ELSA é um sucesso porque conseguiu colocar as doenças cardiovasculares e o diabetes na agenda da pesquisa epidemiológica brasileira. Ele é incrivelmente complexo, com muitas variáveis em estudo e, muitos desfechos a serem conferidos no tempo. Afirmei na inauguração do ELSA em São Paulo que se trata de projeto que visa a próxima geração, não a próxima eleição.
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